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  • Foto do escritorAndrew Soares

"Não ter vaidades é a maior de todas"

É muito comum associarmos palavrões como “integração” e “iluminação” como uma espécie de estado perfeito de alegria e harmonia com a vida. Muitas pessoas, principalmente ligadas ao movimento New Age, frequentemente usam expressões como “morte do ego”, “nirvana” ou outras palavras para falar de um estado perfeito de bem estar. Não é minha pretensão aqui discutir se tais estados de consciência são alcançáveis, seja por técnicas de meditação ou uso de psicodélicos. O que me chama a atenção é o persistente desejo que temos de um estado de ausência completa de desconforto, como uma espécie de retorno ao útero, mas não ao um útero materno, um útero cósmico onde a Terra é nossa grande mãe nutridora.


A imagem do útero como um lugar confortável sempre me chamou um pouco a atenção, afinal o útero é um espaço de transformações muito significativas que poucas pessoas poderiam chamar de tranquilas. Quem já gestou um bebê sabe muito bem de todas as oscilações hormonais, complicações e outras dificuldades que o período de gravidez representa. Mesmo para o bebê, estar num ambiente restrito e cada vez mais apertado conforme passam os dias não me parece uma situação das mais confortáveis como gostamos de pintar sobre esse período das nossas vidas. Talvez o desejo pela perfeição pessoal e fim do sofrimento seja simplesmente o desejo por ter algum nível de sossego emocional que nunca tivemos de fato, ou, se tivemos, foi por momentos muito efêmeros que tentamos desesperadamente reviver e fazer durar um pouco mais.

Narciso de Caravaggio (cerca de 1600)

No grande mercado da busca pelas soluções para todos os problemas da vida emocional, temos algumas “ofertas” (ou talvez ciladas) que facilmente podemos cair em nossa busca por alívio. Talvez a maior cilada seja a busca por algum tipo de “mentor”. A busca por alguém que se diz iluminado (ou quase lá, pelo menos) e que pode lhe mostrar o caminho da felicidade e da paz infinita. As provas de que essa pessoa está próxima desse caminho são diversas: seja por uma postura sempre tranquila e paciente na frente dos discípulos; por acúmulo de bens materiais que foram proporcionados por uma suposta conexão com o sagrado que a pessoa tem; por conseguir meditar por mais tempo ou ser mais resistente aos efeitos de alguma planta de poder. Podemos listar uma série de outras características que visam demonstrar uma coisa simples - o mentor é um ser que está para além da humanidade comum, tendo superado nossos apegos e vaidades em prol de um estágio superior da condição humana.


Mas, como diria Millôr Fernandes “Não ter vaidades é a maior de todas.” A própria busca do “mentor” por parecer ou querer ser de alguma forma superior, destituído de egoísmos, invejas, ciúmes e outras bobagens humanas já denuncia o quanto ele, no mínimo, se auto idealiza ou simplesmente quer passar uma imagem agradável junto ao seu público para vender seus serviços de mentoria. Afinal, quem não quer ser especial?


E não pense que os psicólogos e psicanalistas escapam dessa. É bem conhecida a figura do psicólogo ou psicanalista blasé, que nunca muda de expressão facial, que nunca se choca frente às maiores barbaridades. Aquele profissional que se pinta como o “super homem” nietzschiano que olha para o abismo niilista da existência sem titubear. Aqui também, mais vaidade. Obviamente uma vaidade diferente da anterior, mas não tão diferente assim, afinal de contas é apenas mais um buscando mostrar o quanto é especial e consegue se colocar para além das mesquinharias humanas em troca de algum tipo de benefício em termos de prestígio, respeito ou dinheiro. E são muitos os profissionais medíocres que conseguem dinheiro e fama apenas pela habilidade em fazer carão, tratar temas delicados com a frieza de um açougueiro e usando meia dúzia de citações bem colocadas.


Mas por favor não se engane. Esse texto não é apenas uma crítica gratuita e descompromissada para te alertar sobre os riscos de cair na lábia de um guru qualquer ou ser tratado por um psicólogo ruim. Ele também é uma forma de tentar oferecer um certo contraponto, e que obviamente é o peixe que tenho para vender. Ainda mais em tempo de redes sociais, polêmica é sinônimo de engajamento. Tenho também ao meu favor o fato de não ter citado ninguém pelo nome, logo a carapuça de minhas críticas só serve para quem se identificar com elas.


Começo meu contraponto com a minha “citação bem colocada” de talvez um autor que já foi considerado um dos maiores gurus do ocidente, mesmo que ele nunca tenha se colocado assim: C. G. Jung:

“(...) o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento. A totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria. Mas como o sofrimento é positivamente desagradável, é natural que se prefira nem conhecer a medida do medo e inquietação para a qual o homem foi criado. É por isso que se diz sempre, benevolentemente, que tudo vai melhorar, que se vai alcançar a maior felicidade do mundo, sem pensar que a felicidade também está contaminada, enquanto não se completar a dose de sofrimento. Quantas vezes por trás da neurose se esconde todo o sofrimento, natural e necessário, que não se está disposto a suportar.” (Jung, 1954/2013, §185)

Ao meu ver, não é papel do psicólogo ser alguém para além das vaidades, futilidades, tolices e outros pequenos sofrimentos humanos. Caso isso aconteça, a tendência é de simplesmente nos recusarmos a perceber o quanto esses pequenos sentimentos interferem de forma persistente no nosso dia a dia e como podemos ter algum nível possível de felicidade apesar deles. Caímos no grave erro de acharmos que somos especiais e evoluídos demais para sermos afetados por sentimentos inferiores. Colocamos uma roupagem de falsa complexidade para problemas e sentimentos muito mais simples do que gostaríamos de admitir. Passamos a ter vergonha de nossos sentimentos e da possibilidade de uma transformação real por nos sentirmos especiais demais.


Entendo, portanto, que valorizando nossa humanidade - o que inclui os nossos venenos, invejas e lados mais sombrios, deixando que eles tenham algum espaço na nossa vida - podemos ser mais verdadeiros com os outros e com nós mesmos. Quem tenta se colocar acima da vida ou para além do bem e do mal não pode efetivamente saber sobre ela. A vida não acontece em um espaço racional e analítico em que podemos dissecá-la com um bisturi. Muito menos acontece no alto de um monte imaginário, numa iluminação igualmente imaginária. A vida acontece no pulsar das pequenas coisas, o que inclui nossas pequenas e pueris vaidades.


Há quem possa dizer - mas apontar as vaidades de alguém que tenta não ter vaidades não é mais uma vaidade? - Para estes deixo uma última citação:

“A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta” (Mário Quintana).



Referência

Jung, C. G. (2013). A prática da psicoterapia. In Obras completas de C. G. Jung (Vol. 16/1). Petrópolis-RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1954)

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