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  • Foto do escritorAndrew Soares

Pesquisa ou fan service? Qual o limite do desejo de agradar a audiência na produção de conhecimento?


"Fan service" comumente busca atrair diferentes públicos apelando para nostalgia, materializando memes em detrimento da narrativa e da arte

A produção de conhecimento científico não é tão diferente da produção artística. Ambas dependem de uma figura central - a audiência. Uma obra de arte se torna relevante (e cara) na mesma medida em que é valorizada pela sua audiência. Do mesmo modo as grandes obras clássicas da psicologia atravessaram décadas sendo discutidas até hoje por ainda serem relevantes para sua audiência. Thomas Khun (1996) é um dos primeiros autores a destacar o quanto o conhecimento não é neutro, mas sim dependente de uma série de fatores humanos e demasiadamente humanos para acontecer. O pesquisador, diferente de uma figura sem preconceitos e “desconstruída" (pra usar uma palavra da moda) é na realidade completamente norteado por ideias preconcebidas dentro de seu campo de pesquisa, o que Khun chamou de paradigma.


O paradigma fica explícito quando um trabalho rompe com um modo específico e particular de pensar, gerando uma ruptura que destoa demais ou ameaça abalar os conhecimentos já estabelecidos. O mais comum é que tais produções fiquem esquecidas e se tornem tabus dentro do meio de pesquisa em que são publicadas, seja por que os métodos são pouco ortodoxos ou as conclusões destoam demais do comumente aceiro. É só ver como ainda hoje se escuta que Jung era um místico, por exemplo. Mistificar ou chamar de pseudociência são formas de colocar pensadores e cientistas que destoam do paradigma vigente num ostracismo forçado, sem fazer a devida justiça ao trabalho deles.


Curiosamente, os autores clássicos da psicologia se tornaram importantes exatamente por terem tensionado com as formas de pensar de suas épocas. Caso contrário, teriam simplesmente sido esquecidos como tanto outros autores ditos “menores”. Entretanto essa tensão não surge do nada. Todo um contexto é criado por autores anteriores para que ideias mais radicais pudessem ter algum nível de receptividade do público.


Chegamos então ao ponto do fan service, que nada mais é do que entregar de forma excessivamente explícita e pouco criativa o que uma audiência deseja. É uma forma de consumismo narcisista onde o objetivo é que os fãs recebam exatamente o que desejam e da forma em que desejam, sem que haja a possibilidade de ruído ou da criação efetiva de uma diferença. A provocação que fica aqui é - até que ponto boa parte da produção de conhecimento em psicologia, incluindo psicologia analítica obviamente, não seguem essa lógica de fan service típica da indústria cultural, visando simplesmente agradar de forma acrítica e passiva uma audiência supostamente ávida por novidades, mas que no fundo só deseja mais do mesmo em grande escala? Será que temos de fato um ambiente permeável à discordância e ao pensamento crítico ou simplesmente gostamos de performar uma persona que nos proporciona algum nível de conforto? Será que estamos produzindo de fato conhecimento ou só participando de uma espécie de masturbação mental coletiva em busca de uma satisfação passageira para nossos egos tão inflados e feridos pelas marcas da vida?


Robson Cruz comenta, no seu capítulo “A escrita sem performance lacradora” (Cruz, 2023, pp. 50-55), sobre a a pesquisa feita por Pierre Bourdieu, na década de 60, da tendência dos docentes de Filosofia e Sociologia avaliarem como melhores os trabalhos que utilizavam mais jargões de suas respectivas áreas do que alunos que responderam às questões de forma mais coerente e simples mas sem o uso de jargões. Seguindo nossa provocação, podemos deduzir que diversos elementos da linguagem e da estéticas característico das pessoas no contexto acadêmico das ciências humanas não passam de um fan service para tentar conquistar um capital cultural e simbólico para com avaliadores, entre seus pares e outras figuras de autoridade. Robson ainda comenta:


“Presenciei cena análoga na universidade onde leciono. Numa apresentação de trabalhos de iniciação científica, uma estudante se declarou politizada e crítica com toda a eloquência possível que se encontrava em seu vocabulário repleto de jargões. Porém seu trabalho apresentava estrutura frágil e carecia de argumentação, contando apenas com afirmações autoevidentes de que era muito importante para a sociedade. Em seguida uma estudante de fala simples, vestindo o uniforme cinza da empresa em que trabalhava, discorreu sobre o seu trabalho de modo impecável, estruturando a argumentação de forma clara, articulando conceitos e fazendo a análise dos resultados de sua pesquisa. Não é preciso dizer quem foi elogiada - claro, mais pela aparência do que pela qualidade do trabalho e do texto. A segunda estudante não reproduziu os jargões e clichês da escrita acadêmica, muito menos reproduziu a estética aparentemente desapegada das ciências humanas e sociais - até porque, como ela me disse ao final da apresentação, precisava ‘sair correndo para trabalhar ‘“.

Em épocas de redes sociais e dos algoritmos sempre mostrando exatamente aquilo que desejamos e esperamos, a tendência é que cada vez mais não tenhamos olhos para ver aquilo que nos desagrada, e isso se manifesta na própria psicologia e nas expectativas acadêmicas por trás dela. No caso da psicologia analítica, o fan service se resume numa postura comportada ao ler Jung, Hillman e outros autores sem o devido senso crítico e reconhecendo os limites de suas produções. É destacando sobretudo as qualidades e produzindo um mais do mesmo que beiram a produção de resenhas ou, quando muito, a uma atualização de interpretação para um gosto mais contemporâneo e “desconstruído” dizendo que Jung "já falava isso desde sempre” (o que é forçar a barra).


Não quero aqui dar a entender que todo texto rejeitado é resultado de um “gênio incompreendido” (vide Olavo de Carvalho). É necessário sim que o autor dialogue com sua audiência de forma consistente. A questão é para onde esse diálogo leva. Se é para o senso comum dentro do que já é canônico naquela corrente de pensamento ou é gerando tensão e procurando fissuras nesses modos de pensar. A angústia de perceber essas fissuras e lacunas nos obrigam a encararmos o quanto esses autores, mesmo com toda sua genialidade, são ainda muito pequenos frente a complexidade da vida. Perceber que aquele que tomamos por guia é falível é um despertar duro mas importante para assumirmos a responsabilidade pela nossa própria vida e modo de pensar.


Um dos maiores insights que tive pouco depois de me tornar psicólogo foi compreender a obviedade de que eu sou o protagonista de minha atuação profissional e ficar tentando imitar um autor X ou Y não vai me ajudar a progredir como terapeuta. Os autores e teorias são ferramentas importantes para a condução clínica, mas são apenas ferramentas. Se um marinheiro encalha um navio ele pode até querer culpar seus instrumentos de navegação, mas quem vai ter que lidar objetivamente com todas as situações problemas envolvendo seu barco é ele, não os instrumentos. Curiosamente, só depois de formado consegui compreender claramente a diferença entre pensar as teorias e ser pensado por elas e o quanto essa última opção é uma fuga se si mesmo na expectativa de se encontrar! Mais curioso ainda é o quanto ser pensado pela teoria é uma forma de relação com o conhecimento mais comum na academia do que se gosta de admitir. A reflexão crítica radical é mais comumente reprimida do que estimulada, e quando acontece é para chutar cachorro morto (por exemplo, falam mal de Freud entre junguianos é fácil, quero ver criticar Jung entre junguianos!). Essa postura é péssima, pois quem melhor do que uma pessoa que se dedica ao estudo de um autor para poder critica-lo com qualidade e fazendo justiça aos limites e potencialidades do seu pensamento? Sempre desconfio muito de todo profissional que acha seu autor de referência lindo e maravilhoso e tece críticas das mais corrosivas as outras formas de compreender a realidade, quase numa expectativa de purificação do conhecimento um tanto higienista e perigosa (um bom exemplo são as polêmicas geradas pela Natalia Pasternak).


Talvez devêssemos aprender um pouco com a arte e suas semelhanças com a produção científica. Inclusive poderíamos pensar se o fazer científico e sua escrita não é uma forma de arte esquecida. Mas aprender com a arte é diferente de aprender com a indústria cultural e com seus infinitos fan services e apelos a nostalgia. Me refiro aqui a aprendermos a adotar uma disposição mais sensível e menos enviesada para com a produção de conhecimento. Que possamos nos permitir circular por lugares e afetos menos óbvios do que os já muito conhecidos em nossos percursos de leitura, buscando efetivamente o novo. E falo aqui de um novo genuíno, não aquele que é apenas uma performance, um requentado nostálgico de algo já velho e bastante pasteurizado. Por uma escrita e fazer acadêmico que valorize um pouco mais a diferença, assim como pretendemos fazer na prática da psicologia. Talvez essa postura ajude a reduzir inclusive o tão conhecido sadismo de muitos pareceristas de revistas científicas, que justificam seu ressentimento para com os textos que recebem alegando que estão “mal escritos” ou “mal fundamentados” quando na realidade o objetivo é sabotar leituras que tensionam o seu modo de pensar. Que possamos minimamente ter uma relação mais honesta e produtiva para com o conhecimento.


Referências:

Kuhn, T. (1996) A estrutura das revoluçőes científicas. 4a ed., Săo Paulo, Perspectiva.

Cruz, R. (2023) O zen e a arte da escrita acadêmica. Belo Horizonte, Casa da Escrita


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